data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Com Apraxia de Fala, Arthur conta com a ajuda da mãe, Cristiane, na alfabetização
A falta de rotina provocada pelo período de distanciamento social devido à Covid-19 tem sido um desafio para quem tem filhos. Maior ainda é a tarefa de quem tem crianças com deficiência. Além do entretenimento e ajuda nas ações do dia a dia, pais e mães se desdobram para atender também atividades que antes da pandemia eram responsabilidade profissional. Muitas terapias foram interrompidas, inclusive em instituições onde os serviços eram oferecidos de forma gratuita ou por preços menores que os da rede privada.
Esta é a realidade da editora de texto Cristiane Gelatti, 33 anos, e do operador de segurança, Anderson Felin, 34 anos. Eles são pais de Rafaela, 3 anos, e Arthur, 7. Arthur foi diagnosticado com Apraxia de Fala na Infância com 4 anos, e desde então recebia tratamento fonoaudiológico focado. Ele tinha atendimento gratuito, uma vez por semana, no Serviço de Atendimento Fonoaudiológico (SAF) na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e está desde dezembro sem atendimento. É que, depois do período de férias na universidade, com os decretos estadual e municipal recomendando o fechamento das instituições de ensino, a clínica não retomou os atendimentos.
Segundo Cristiane, Arthur também começaria a ter atendimento na Clínica de Psicologia da Ulbra, que oferece sessões a preços acessíveis. O suporte psicológico seria fundamental, de acordo com a mãe, para que o filho pudesse lidar com as tentativas frustradas de se comunicar. A família se inscreveu, passou por entrevista, mas o tratamento não teve início, também por conta das restrições da Covid-19.
- Havíamos decidido iniciar esse acompanhamento para que ele conseguisse expor melhor seus sentimentos e soubesse lidar com eles da melhor forma possível, visto que é uma criança muito amável e nem sempre sabe expor em palavras os sentimentos de raiva e frustração ou solucionar pequenos conflitos do dia a dia - explica a mãe.
Cristiane está trabalhando de casa e o marido está afastado do trabalho para recuperação de tratamento oncológico. Os dois se revezam para dar conta das brincadeiras e cuidados com os filhos, e atividades necessárias para o desenvolvimento de Arthur.
ALFABETIZAÇÃO COMPROMETIDA
A família não consegue arcar com as despesas de um tratamento particular no momento e se preocupa principalmente com a questão da alfabetização. Sem o acompanhamento fonoaudiológico, o desenvolvimento da fala fica comprometido e afeta bastante essa etapa na escola. Arthur cursaria o segundo ano do Ensino Fundamental este ano. Ele estuda em uma escola da rede municipal, que diferente da estadual, não está enviando atividades para fazer em casa. Cristiane e Anderson buscam atividades na internet, usam quadro e giz, aplicativos de celular, tudo para tornar as lições mais atrativas.
- No tempo que sobra, temos feito atividades relacionadas à alfabetização para que ele consiga acompanhar os colegas no retorno. Estamos tentando focar na leitura. As sílabas básicas, ele consegue pronunciar, mas quando entram duas consoantes na mesma sílaba ele tem mais dificuldade. Somos dedicados, mas também somos amadores. A ajuda profissional, ou a falta dela, faz uma diferença significativa para o desenvolvimento da fala e da alfabetização - explica Cristiane.
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O QUE DIZEM AS INSTITUIÇÕES
- A mediadora do Serviço de Atendimento Fonoaudiológico (SAF) e Chefe-substituta do Departamento de Fonoaudiologia da UFSM, Angela Ruviaro Busanello Stella, informa que o serviço é a clínica escola do Curso de Fonoaudiologia da UFSM. Como a grande maioria as atividades assistenciais desenvolvidas têm a participação de alunos de graduação e pós-graduação, o serviço deixou de ser oferecido com as instruções institucionais para suspensão das atividades desde o dia 17 de março. Segundo ela, não há estrutura para acompanhar os pacientes e famílias de forma remota e não há previsão de abertura e a retomada deverá ser analisada com cautela para a proteção de todos
- A Ulbra respondeu que os atendimentos na clínica escola são realizados pelos estagiários, que estão com suas atividades práticas suspensas temporariamente. A universidade informou que aguarda novas diretrizes nacionais e estaduais para o retorno das atividades de estágio na clínica escola e que ainda não há data de retorno
ISOLAMENTO DE SURPRESAS
A bancária Fátima Carlos Posser, 46 anos, é mãe de Arthur, 24 anos, Maria Luiza, 22, Júlia, 7, e Fabrício, 3. Júlia foi diagnosticada com apraxia da fala com 5 anos de idade. Ela também tem transtorno misto de desenvolvimento e transtorno de processamento sensorial. A rotina dela incluía terapias de fonoaudiologia, psicopedagogia, terapia psicomotora e equoterapia. Além disso, frequentava o 1º ano do Ensino Fundamental em uma escola da rede privada. Com a necessidade da reclusão social, toda a agenda ficou parada no começo.
- As primeiras duas semanas foram bem difíceis, porque ela (Júlia) ficou sem rotina. Ela trocava o dia pela noite. Ás vezes, às 2h da manhã, queria brincar, porque não conseguia entender que o dia tinha terminado - conta Fátima.
Fátima participa frequentemente de cursos sobre o tema e aplica atividades pedagógicas de um site especializado que assina para ajudar no desenvolvimento da filha. O empenho já teve resultados positivos:
- Como ela tem dificuldade na questão da ideação da brincadeira, ela não consegue brincar sozinha e ela está buscando muito a gente para isso, o que é muito positivo. Durante o período de isolamento ela também nos surpreendeu ao andar de bicicleta. Ela nunca conseguiu pedalar, e agora ela achou jeito de dar meia volta no pedal, porque não consegue dar volta inteira. Isso foi uma coisa extraordinária.
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Para dar conta das tarefas de mãe e "terapeuta", Fátima entrou com pedido de redução de carga horária e, em janeiro de 2019, a justiça concedeu liminar permitindo que ela trabalhasse menos horas. Desde a suspensão das atividades das crianças, a bancária pediu atestado, licença para acompanhamento da filha e tirou férias. Com o retorno da atividade, teve autorização para trabalhar em casa já que a Caixa Federal, banco em que trabalha, segue indicação da Organização Mundial da Saúde sobre conceder o direito de home office para pais e responsáveis de crianças com deficiência.
Maria Luiza, que é formada em Direito, mas aguarda a liberação da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para trabalhar, auxilia nos cuidados de Júlia e Fabrício nos momentos em que a mãe está trabalhando. Influenciada pelas necessidades da irmã, Maria Luiza também começou a estudar Educação Especial na UFSM este ano.
data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)
Júlia (na tela, com a mãe, Fátima) se adaptou à terapia pela internet com a fonoaudióloga Marileda
INTERAÇÃO QUE DEU CERTO
Duas semanas depois do início do isolamento, Fátima decidiu tentar dar seguimento ao tratamento com a fonoaudióloga de Júlia por Skype e o resultado foi um sucesso:
- A Júlia ficou muito animada, e pedi que a gente fizesse sessões diárias. Para a nossa surpresa, a Júlia ficou muito motivada. Ela está com interesse de escrever, se engaja nas dinâmicas propostas e fica esperando por esse momento - relata Fátima.
Com isso, Fátima decidiu tentar incluir outra terapia à distância: a psicopedagogia. Até agora foram dois encontros, também com sucesso. Mesmo sem a interação com o cavalo Yucatán, da equoterapia, e longe da terapia psicomotora, Fatima comemora o que pôde ser encaixado na rotina do confinamento. Com oportunidade de pagar os tratamentos particulares, a bancária diz que a falta dos serviços atrasaria importantes avanços de Julia:
- A terapia fonoaudiológica é treino. A questão da fala é uma questão motora. É mais ou menos como ir na academia fazer treino durante um ano e parar de fazer. Ou seja, aquilo que foi adquirido, pode ser perdido em pouco tempo.
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QUANTO A CRIATIVIDADE DERRUBA AS BARREIRAS VIRTUAIS
A fonoaudióloga Marileda, que ofereceu a alternativa do atendimento online para seus pacientes, entre eles Júlia, precisou estudar para mudar o formato das sessões. Assim que o Conselho Federal de Fonoaudiologia autorizou os teleatendimentos, ela melhorou a qualidade da internet em casa e buscou recursos que fossem atrativos e fizessem a criança ter interesse na terapia.
Adepta do Método Prompt, que usa o toque nos músculos que devem ser estimulados para a produção da fala, a profissional teve de ser criativa para conseguir romper a barreira virtual.
- Normalmente faço um vídeo aplicando em mim mesma a manobra e envio para a família, para auxiliar, mas isso não substitui a estimulação tátil e cinestésica nas crianças, e nem os abraços apertados e quentinhos - ressalta.
Segundo Marileda, as terapias de linguagem precisam ser constantes. Ela esclarece os prejuízos da falta do estímulo:
- Caso não tenha essa constância, podemos perder sons que já tinham sido adquiridos ou progressos na fala que já vinham acontecendo. A Júlia, por exemplo, também está em fase de alfabetização, por isso é muito importante estar sempre fazendo a relação da fala e da escrita, que com a assiduidade terapêutica é muito favorecida.
Mesmo com o "malabarismo" para levar os recursos da clínica ao ambiente eletrônico, nem todas as famílias conseguiram acomodar as terapias no dia a dia. Os obstáculos são diversos:
- Com as crianças menores não é muito fácil, pois demanda atenção, que é uma habilidade que está em desenvolvimento. Em crianças não-verbais ou minimamente verbais também, já que o atendimento é todo pautado na troca pelo brincar, que nem sempre é possível no computador. O que tenho feito é enviar vídeos e atividades, para os que não aderiram ao teleatendimento e tentado dar o suporte necessário. No entanto, sei que as rotinas estão muito diferentes, e é um momento diferente também - avalia a fonoaudióloga.
data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Arquivo Pessoal
Joel e Sabrine estão com as filhas, Eduarda e Antonia (sorrindo), em isolamento total
SEM ALTERNATIVA, PAIS ASSUMEM MÚLTIPLOS PAPÉIS
Os professores Sabrine de Menezes da Silva, 33 anos, e Joel Cordeiro da Silva 39 anos, são pais de Antonia, 6 anos, e de Eduarda, 10 anos. O casal morava em Santa Maria, mas agora está em São Vicente do Sul, onde as crianças estudam na Escola Municipal Eduardo Lutz. Antonia está no 1° ano, e Eduarda, no 5° ano. Antonia tem autismo e Eduarda teve tetraplegia como consequência de uma parada cardíaca quando tinha 7 anos. As duas também tinham uma extensa agenda de terapias antes da pandemia: educação física, terapia fonoaudiológica, terapia ocupacional, fisioterapia e educação especial.
Como as duas são não verbais, ou seja, não se comunicam pela fala, não é possível adaptar os tratamentos de forma remota via internet. Sabrine conta que parte das sessões eram em Santa Maria e parte em São Vicente do Sul. Algumas clínicas e profissionais que vinham fazendo o acompanhamento das meninas já voltaram a atender, mas, como as duas filhas e o pai têm cardiopatia e fazem parte do grupo de risco da Covid-19, a família tem mantido isolamento total.
A mãe deixou de trabalhar quando Eduarda saiu do hospital, há 3 anos. Desde então, se dedica integralmente às filhas. Joel está trabalhando em casa desde o início da suspensão das aulas no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFAR), em que leciona.
- A agenda sempre foi organizada em função da escola. As terapias eram feitas em turno oposto, e era sempre é um quebra-cabeça adequar os horários das duas - relata a mãe.
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Há um mês sem terapia e sem escola, os pais têm batalhado para manter rotinas básicas como a hora de dormir e de acordar. Além disso, a falta de acompanhamento profissional preocupa Sabrine:
- O maior desafio é tentar estimular elas em casa, pois a rotina está totalmente atípica, e nem sempre elas querem fazer alguma atividade. Sempre há a preocupação de haver algum tipo de regressão por não sabermos quanto tempo a situação irá permanecer assim, mas estamos em contato com as terapeutas para fazer algo em casa também na medida do possível.
ENTENDA:
- Apraxia da fala - A apraxia da fala é um distúrbio que impede que o cérebro envie os estímulos necessários para os músculos que produzem a fala. O transtorno pode ser notado na infância, ou mesmo adquirido na vida adulta (após uma lesão cerebral, por exemplo). A criança com apraxia sabe o que quer dizer, tem uma boa compreensão, mas não consegue produzir os sons e palavras claramente
- Autismo - Transtorno do Espectro Autista (TEA) define-se por prejuízos persistentes na comunicação e interação social, bem como nos comportamentos que podem incluir os interesses e os padrões de atividades, sintomas estes presentes desde a infância que limitam ou prejudicam o funcionamento diário do indivíduo